quarta-feira, 15 de junho de 2011

A Autonomia do Acre


Depois da assinatura do Tratado de Petrópolis, que anexou definitivamente o Acre ao Brasil, o governo do Amazonas esperava que as ricas terras acreanas lhe fossem concedidas. Afinal de contas, o Amazonas havia investido muito dinheiro na Revolução Acreana em suas diferentes etapas. Mas os acreanos haviam arriscado não só terras e fortunas, como suas próprias vidas nas trincheiras e varadouros da guerra contra os bolivianos. Era justo então esperar que o Acre se tornasse o mais novo estado da federação brasileira e seus cidadãos pudessem usufruir dos mesmos direitos políticos de qualquer brasileiro.
Entretanto, contra todas as expectativas, o governo federal decidiu não atender a ninguém, senão a seus próprios interesses. Assim, no principio de 1904, o Acre se tornou o primeiro Território Federal da história brasileira. Um sistema político-administrativo, não previsto na Constituição, que estabelecia que o Acre deveria ser administrado diretamente pela Presidência da Republica, a quem caberia nomear seus governantes e arrecadar impostos.
Para justificar sua atitude o governo federal alegou que precisaria recuperar o capital pago ao Bolivian Syndicate (110 mil libras esterlinas) e as indenizações à Bolívia previstas no Tratado: dois milhões de libras esterlinas e construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Por isso, toda a estupenda arrecadação de impostos sobre a borracha acreana teria que ser canalizada para os cofres da União.
O resultado imediato da surpreendente medida do governo brasileiro foi que a sociedade acreana passou a uma condição de tutela e dependência do poder executivo federal. Uma situação sem precedentes na história brasileira.
Como Território, o Acre não tinha direito a uma Constituição própria como os outros estados federados, não podia arrecadar impostos - sendo mantido pelos repasses orçamentários do governo federal, que eram sempre infinitamente inferiores às necessidades de uma região onde tudo estava por fazer - e sua população não poderia votar para as funções executivas ou legislativas (que sequer existiam) na região.
Portanto, os acreanos que haviam conquistado pelas armas o direito de serem brasileiros, ao alcançar a vitória foram condenados a serem cidadãos de segunda categoria em seu próprio país. Enquanto isso o Presidente da Republica - de seu gabinete no Rio de Janeiro a mais de quatro mil quilômetros de distancia dos problemas acreanos - nomeava sucessivamente militares, magistrados ou políticos derrotados para governar o Território Federal do Acre.
Começava assim uma nova etapa de lutas da sociedade acreana. Pois logo se perceberia que das fabulosas somas arrecadadas na exportação de borracha e na importação de mercadorias para abastecer os seringais, o governo federal mandava apenas uma pequena parte para a administração do Território, onde não havia escolas, hospitais ou quaisquer outras estruturas públicas. Além disso, os governantes nomeados para o Acre não possuíam o menor compromisso com a região, aproveitando as verbas públicas em proveito próprio e afastando os acreanos do exercício dos cargos políticos ou administrativos. Situação ainda mais agravada pela distancia e isolamento das cidades acreanas e pela ineficiência do poder judiciário.
A autonomia política do Acre tornava-se então a nova e necessária bandeira de luta do povo acreano. Na verdade, era uma aspiração muito simples: a transformação imediata do Território Federal do Acre em Estado autônomo da federação brasileira. E para lutar por essa causa começaram a ser fundados clubes políticos e organizações de proprietários e/ou de trabalhadores em diversas cidades como Xapuri, Rio Branco e Cruzeiro do Sul. Além disso, em poucos anos, a situação social acreana se agravaria muito pela crise da borracha e pelos desmandos cometidos pelos governantes nomeados para o Acre, obrigando a sociedade a reagir.
A radicalização dos conflitos logo produziria novas cicatrizes no tecido social acreano. Plácido de Castro, um dos líderes da oposição ao governo federal, foi assassinado (ainda em 1908) numa emboscada que todos sabiam de antemão que iria ocorrer. Em Cruzeiro do Sul, em 1910, a primeira revolta autonomista depôs o Prefeito Departamental do Alto Juruá e proclamou criado o Estado do Acre. Cem dias depois, tropas federais atacaram os revoltosos e restabeleceram a "ordem" e a tutela. Sena Madureira em 1912 e Rio Branco em 1918 também conheceram revoltas autonomistas que foram igualmente sufocadas à força pelo governo brasileiro.
A sociedade acreana viveu então um dos períodos mais difíceis da sua história. Os anos 20 foram marcados pela completa decadência econômica provocada pela queda dos preços internacionais da borracha graças à produção infinitamente mais barata dos seringais de cultivo asiáticos. Os seringais acreanos entraram em falência, uma boa parte dos seringueiros começou a voltar para suas regiões de origem e a desesperança geral transformou o Acre num "igapó de almas" segundo a descrição de Océlio de Medeiros no livro "A Represa". Toda a imensa riqueza acumulada durante os anos áureos da borracha amazônica havia sido drenada para os cofres federais relegando o Acre ao completo abandono oficial.
Era tempo de se buscar novas formas de organização social e de encontrar novos produtos que pudessem substituir a borracha no comércio internacional. Os seringais se transformaram em unidades produtivas mais complexas. Teve início a pratica de uma agricultura de subsistência que diminuía a dependência de produtos importados, uma intensificação da colheita e exportação da castanha e o crescimento do comércio de "peles de fantasia", como era chamado então o couro de animais silvestres da fauna amazônica. Começavam assim, impulsionadas pela necessidade, as primeiras experiências de manejo dos recursos florestais acreanos.
Além disso, a escassez da mão de obra nordestina levou ao emprego crescente das comunidades indígenas remanescentes nos seringais e os comerciantes sírio-libaneses substituíram as casas aviadoras de Belém e Manaus na função de abastecer os barracões e manter ativos os seringais acreanos. Entretanto, a situação de tutela política sobre a sociedade acreana se mantinha inalterada.
Nem mesmo o novo período de prosperidade da borracha, provocado pela Segunda Guerra Mundial, foi capaz de modificar esse quadro. Durante três anos (1942-1945) a "Batalha da Borracha" trouxe milhares de famílias nordestinas para o Acre, repovoando e enriquecendo novamente os seringais.
Essa melhoria do contexto econômico fez com que os anseios autonomistas ganhassem nova força. Mas os acreanos teriam que esperar ainda quase vinte anos para ver sua antiga aspiração de autonomia política ser realizada. Só em 1962, os acreanos conseguiram através de uma longa batalha legislativa transformar o Território em Estado.
O Acre, que havia sido o primeiro Território Federal de nossa história, foi também o primeiro a ser "elevado" à categoria de estado, já que o governo brasileiro havia estendido o sistema territorial a outras regiões (talvez não por coincidência sempre na Amazônia: Rondônia, Amapá, Roraima).
Foram 58 anos de resistência, entre 1904 e 1962, até que o movimento autonomista finalmente conquistasse para os acreanos os mesmos direitos básicos e essenciais de qualquer cidadão brasileiro. Pela primeira vez na história os acreanos poderiam exercer plenamente sua cidadania. Isso aconteceu há apenas quarenta anos.

A Longa Luta pela Autonomia Acreana

O movimento autonomista nasceu com o fim da Revolução Acreana. Isso porque o ideal estabelecido pelos revolucionários acreanos era que o Acre fosse anexado ao Brasil como estado autônomo da federação brasileira. Porém havia uma disputa intensa entre Belém e Manaus pela primazia comercial na Amazônia. Por isso interessava a Manaus que com o fim da Revolução Acreana fosse o Acre incorporado ao Amazonas. Exatamente o que não queria Belém, já que com as rendas do Acre, Manaus ultrapassaria Belém em importância comercial.
Aproveitando-se desse conflito de interesses, cada qual puxando pro seu lado. O governo federal resolveu que não atenderia a ninguém e instituiu o sistema de Território federal, feito de encomenda para o Acre. Por esse sistema, o Acre pertencia à administração federal e era a união quem arrecada todos os impostos acreanos. Para justificar essa atitude a republica brasileira argumentava que era preciso ressarcir os prejuízos assumidos com a anexação do Acre: Indenização à Bolívia, ao Bolivian Syndicate e construção da ferrovia Madeira-Mamoré.
Com isso, os governadores do Acre eram indicados pelo governo federal ao seu bel prazer, sem consultas ou sem participação alguma dos acreanos no processo de escolha dos governantes. Assim eram indicados para governar o Acre militares "linha-dura", para "por ordem na casa", ou políticos derrotados nas eleições de seus respectivos estados. Na pratica isso significou uma enorme afluência de homens sem nenhum conhecimento da realidade regional que só queriam se aproveitar das rendas federais remetidas para o Acre. Além disso, normalmente cada novo governador indicado para o Acre trazia na bagagem toda a sua "equipe" que ocupava o primeiro escalão sem deixar espaço para os acreanos exercerem outras esferas de poder.
Em função dessa realidade político-administrativa, por diversas vezes os acreanos se revoltaram e fizeram movimentos de contestação, uns mais radicais outros mais brandos, que pediam principalmente autonomia política para os acreanos. Ou seja, os acreanos queriam ter os mesmo direitos que qualquer outro brasileiro de votar e escolher seus próprios governantes.
Os movimentos autonomistas foram, dessa forma, recorrentes na história do Acre. Começando pelo Juruá, cuja população, em 1910, se revoltou contra o novo Prefeito Departamental escolhido para aquela região e que era acusado de inúmeras irregularidades administrativas. Por conta disso, os juruaenses pegaram em armas e depuseram a autoridade federal ocupando o poder por 100 dias. O governo federal chegou a mandar tropas regulares para combater os revoltosos autonomistas. Porém o movimento do Juruá ficou isolado pois só em 1913 movimento semelhante ocorreria no Purus, em Sena Madureira por motivos muito semelhantes.
Em 1918 seria a vez da luta autonomista chegar ao vale do Acre, em Rio Branco, que protestou intensamente contra a manutenção daquela absurda situação de subjugação ao governo federal, mas também sem recorrer às armas.
Depois disso, a reforma política de 1920 que unificou as quatro prefeituras departamentais em um único governo territorial serviu para acalmar o vale do Acre que foi beneficiado pela reforma, já que para capital do Território foi escolhida Rio Branco.
O movimento autonomista ressurgiria com força uma década mais tarde, quando a Revolução de 30 alterou completamente os rumos da republica brasileira. Nesse momento os acreanos acreditaram que poderiam enfim conquistar a tão sonhada autonomia. Mas foi em vão. Com a constituição de 1934 o Acre só obteve o direito de eleger dois deputados federais para representá-lo na Câmara Federal, sem alterar o regime de indicação dos governadores do território.
Seguiu-se mais um longo período em que as discussões autonomistas não passavam de conversas em intermináveis reuniões e de fundações de agremiações políticas e jornais que tinham como bandeira maior o autonomismo. Multiplicaram-se os simulacros de partidos políticos: Legião Autonomista, Partido Construtor, Partido Autonomista, Partido Republicano do Acre Federal, Comitê Pró-autonomia, etc. Assim como se multiplicavam os títulos de jornais com apelo autonomista (ver manifesto dos autonomistas), como por exemplo: O Estado, O Autonomista, O Estado do Acre, etc.
Impulso mesmo o movimento autonomista só voltaria a ter em meados da década de 50, quando o PSD do Ex-governador Guiomard Santos resolveu assumir essa bandeira e elaborar um projeto de lei que transformava o Acre em Estado. Esse projeto causou grande movimentação política em todo o Acre e chegou ao Congresso Nacional em 1957 provocando uma intensa disputa política entre o PTB de Oscar Passos e o PSD de Guiomard Santos, tendo o primeiro se posicionado contra a lei de transformação do Acre em Estado.
Depois de muitas disputas no Congresso Nacional, finalmente em 1962, durante a fase parlamentarista do governo João Goulart, foi assinada a lei 4.070 de autoria do então deputado Guiomard Santos. Por uma ironia política o Presidente João Goulart era do PTB, o partido que a nível regional se colocava contra o tal projeto. Ainda assim o mesmo foi aprovado e passou a vigorar a partir do dia 15 de junho de 1962.
Obs: O PTB não foi de todo derrotado, já que nas primeiras eleições livres e diretas realizadas na história do Acre foi o PTB o grande vencedor fazendo o primeiro governador constitucional do Acre, o Prof. José Augusto e todas as prefeituras municipais acreanas.

Do historiador Marcos Vinícius Neves.